Rabiscos
Diziam que naquela casa vivia uma família barulhenta.
Mas poucos sabiam que, acima das broncas e rabiscos, existia um silêncio antigo que os acompanhava. Uma presença leve, quase imperceptível, que observava tudo como quem protege sem ser lembrado.
Foi essa voz que ouviu e viu as primeiras aventuras:
crianças acreditando que lápis nas paredes eram enfeites, que bonecas raspadas podiam renascer com novos cortes de cabelo, que papel sulfite era mais valioso que ouro.
Ali, entre manchas de tinta e histórias inventadas, a imaginação sempre foi o lar mais seguro.
E quando os pais saíam, essa presença via também o perigo alegre de quem ainda não entendia nem um pouco o mundo.
Sereias de barriga ralada, acrobatas de colchão escada abaixo, exploradores que deixavam a casa inteira respirando cansaço… e riso.
Sim, o riso. Ele sempre escapava, mesmo quando a bronca vinha logo atrás.
A voz lembrava do dia em que alguém comentou:
“Se fossem meus filhos, eu enlouqueceria.”
E viu como aquilo doeu.
Mas também viu que, de alguma forma, a dor nunca calou a criatividade, apenas a tornou mais teimosa.
Houve tempos difíceis, e a voz guardou cada um deles.
Ela viu o barulho da fome ecoando em barrigas pequenas, o pacote de pipoca que salvou jantares, as batatas fritas que pareceram festa.
Viu pés sem sapatos caminhando até o clube, e bolhas nascendo como medalhas silenciosas.
Viu o Natal na casa de desconhecidos, a luz faltando e a mãe acendendo uma vela como quem reacende a coragem.
E viu também milagres pequenos, esses que só crianças percebem.
A reza sussurrada no escuro…
O “amém” que devolveu a luz…
O pai ensinando a secar o corpo com saltos e risadas quando não havia toalhas.
O encarcerado da própria timidez encontrando força na música da igreja.
Os mergulhos por baixo das ondas, primeiro com medo, depois com confiança, e por fim com o abraço do mar.
A presença sorria quando elas vestiam roupas imaginárias, costuradas apenas com dedos no ar.
Vestidos que nunca existiram, mas que, de alguma forma, ainda brilham em algum canto invisível do tempo.
Viu também o amor entre irmãos.
Um tentando ensinar o outro a andar de bicicleta,
o irmão descendo a ladeira como flecha teimosa,
e a aceitação silenciosa de quem já sabe que não dá para lutar contra o destino.
E havia música.
Sempre houve música.
Teclados acumulados como tijolos de uma muralha sonora, vozes que tremiam no começo e depois encontravam harmonia, ainda que escondendo as mãos nervosas nos tecidos das próprias roupas.
A presença se emocionou ao ver o carinho que ninguém dizia em voz alta:
crianças olhando os pais na porta da escola como quem recebe o sol depois da chuva.
O orgulho de uma mãe que não se vê bonita, mas é.
A certeza silenciosa, dentro de uma menina pequena no posto de saúde, de que tinha “a melhor família do mundo”.
E quando o carro voava por um segundo na ladeira…
“ooooo”
“eeeeee”
Ela via ali uma alegria tão simples que parecia sagrada.
Hoje, quando essa voz revisita o passado, ela enxerga uma família de sobreviventes-poetas, que transformou sofrimento em imaginação, medo em fé, areia em castelo, pipoca em banquete, rabiscos em universos inteiros.
Eles cresceram.
Mudaram diversas vezes de casas, cidades e dores.
Mas continuam sendo vistos. Pelas estrelas que ainda escutam, pelo mar que virou abraço, pela luz que dança em cada vela acesa.
A história deles não é perfeita.
Mas nenhuma história destinada a durar é.
Eles são feitos de falhas, bagunças, broncas, milagres e amor.
Uma família imperfeita? Sim.
Mas única, sempre.
E a presença que narra tudo isso sorri em silêncio, sabendo o que eles talvez ainda não saibam:
"O que os manteve vivos não foi a casa.
Não foi o dinheiro.
Não foram os natais, nem os brinquedos, nem os sapatos ausentes.
Foi o fato de que, mesmo no escuro, eles nunca estiveram sozinhos."
Comentários
Postar um comentário