Bem-vinda ao Jazz

Tudo começou com um frio que me pegou desprevenida.
Uma caminhada gelada, sem roupa térmica, a meia fina, o ar entrando como navalha pelo nariz. E depois disso, a garganta reclamou. Veio a tosse e o silêncio.

A voz foi embora devagar, como quem avisa, mas não é ouvida.
Tentei cuidar.
Três litros de água, chá atrás de chá, pastilhas, mel, inalações com soro, gargarejo de água e sal, silêncio absoluto. Passei dias em modo monge.

Mas a apresentação estava marcada. Domingo. 16:30.

Pago com antecedência.

E minha garganta ainda ardia. Cada melhora era pequena, mas eu seguia acreditando.
Uma fé miúda, mas constante.

Chegou o dia.
Garoa o tempo inteiro.
Chegamos no local e a mesa de som não colaborava. Meu pai, com o teclado que dependia dela, saiu correndo pra buscar outro. Voltou. A fonte do teclado? Estava em casa. Lá foi ele, de novo, correndo. Eu fiquei no Largo da Borges, cuidando das coisas. Calada. Esperando.

Começamos a tocar às 17:10.
Nada de sequência de músicas, nada de planos. 

“Qual vai agora?” “Não sei.”


Eu não alcançava os agudos. Não forcei.
Transformei os agudos em graves, mudei as melodias de última hora, improvisei com o que eu tinha.
Achei tudo um horror.
Meu pai riu e disse:
Bem-vinda ao Jazz.

E naquele instante, entendi.
É isso. Improviso. Sobrevivência com estilo.

O público sumiu, mas duas pessoas aplaudiram.
E no final, o pessoal da loja de chá elogiou, e meu pai contou sobre a minha voz.

Voltando pra casa, quase fomos atropelados por uma mulher distraída no celular.
Pulamos pra frente.
Ela parou em cima da gente, depois seguiu como se nada tivesse acontecido.
Gritei por dentro, me imaginei jogando a caixa de som no vidro dela.
Mas respirei fundo.
Voltei ao modo zen.

Em casa, tirei a maquiagem, troquei de roupa.
Sobrevivi.



#cadernosdesbotados #textonovonoblog #artenarua #textoautoral

Comentários